Vinte anos após a morte de Zeca Afonso: um testemunho
O que poderá um miúdo lembrar sobre a vida e obra de Zeca Afonso hoje, vinte anos após o seu desaparecimento? Nada ou muito pouco... Umas sonoridades, umas guitarradas, uns sonhos, uns idealismos, uns copos de tinto misturados com uns frangos e umas cervejolas e graçolas da época contra o velho "Botas" ou resquícios dele, uns quilos de utopia e uma vontade transformadora do mundo, como diria o velho barbudo Carlinhos Marx. Que, porventura, toda aquela geração de músicos e compositores, politizados pela velha Coimbra da Universidade, do fado e das farras consolidou.
Ainda batia com a testa na esquina das mesas e esbracejava para chegar ao botão dos rádios a válvulas quando ouvi pela 1ª vez as músicas do Zeca Afonso. Na altura não havia hip op, rap, house e outros estilos musicais. Cedo percebera que havia alí luta de homens através da música: os que queriam a manutenção da situação política e aqueles outros que queriam a transformação do que estava e só servia meia dúzia de senhores instalados no poder, na banca e na alta e medíocre finança daquele - então - Portugal rural, agrícola, apartado da Europa com uma economia frágil então muito importadora e pouco exportadora. Ou seja, muito dependente do exterior e pouca produtiva e inovadora intramuros. Hoje parece que a coisa não está assim muito diferente, apesar das redes sociais e das estruturas conectivas ampliadas pelo Rizoma que é a Internet. Na altura vivia em Abrantes, ou melhor estudava no velho liceu de Abrantes, e notava que nos dias em que o meu falecido Pai me levava à escola no Porshe 911 preto com aleron, nesse dia tinha muitos amigos, nos dias em que chegava de mota também tinha alguns amigos, mas nos dias em que chegava a pé ou by bus tinha apenas os livros como companheiros. Era assim na velha e rural cidade de Abrantes onde hoje as motivações, apesar de terem mudado de modelo, de marca e de cilindrada, não mudaram assim tanto, e por uma razão simples: o homem continua a ser o velho-cão materialista de sempre e nem o banho de cultura o civiliza... A internet também não faz milagres, em certos casos até amplifica o analfabestimo digital, a avaliar pelas respostas e considerações que o actual Procurador-Geral da República dá ao País... Foi nesse contexto social e relacional que guardei ecos da voz misteriosa, profunda e sonhadora de Zeca Afonso, apesar de nunca ter sido um adepto daqueles sonhos de transformação que rápidamente o PCP se apropriou estragando, por vezes, o melhor que a música e a letra do Zeca tinham. Aqui cabe uma palavra a Mário Soares, talvez a peça mais importante na altura porque travou Cunhal e os ímpetos comunistas que desejavam lançar Portugal num modelo de comunismo à soviética. Hoje estaríamos ao lado da Albânia em termos de índices de desenvolvimento comparativo. Mas como não seguimos esse modelo à soviética, resta-nos pensar que ainda estamos à frente do Chipre!!! Do Chipre?!!! Hoje faz já 20 anos após a morte de Zeca, o cantor-compositor de músicas que ouvia no carro com o meu Pai, o meu irmão e alguns amigos no tempo em que as viagens demoravam horas, mesmo que fosse para percorrer breves kilómetros. Mesmo os que não o apreciavam, tinham sempre por ele o respeito de o ouvir em silêncio, pois quando não se apreciava a música a letra batia forte; quando a letra era secundarizada era a música que produzia impacto nas nossas consciências. Letras e impactos que hoje pouco ou nada dizem às novas gerações dos morangos com açucar, que miram o mundo em permanente transformação, sem que tenham de pensar que já muitas pessoas tiveram como ideal de vida o apenas viver em Liberdade, livre da censura, da PIDE/DGS e de muitas outras malhas que as ditaduras tecem, de forma clara ou oculta. Bem sei que hoje a utopia se mede pelo balanço bancário, a ideologia está vertida no emprego e no modelo de automóvel que se tem ou nas roupas de marca que se ostenta, os sonhos estão espraiados na casa que se conseguiu comprar e por aí fora. Estou desconfiado que se Zeca Afonso cá regressasse hoje a 1ª coisa que perguntaria era saber em que País estava, depois talvez pedisse desculpa por ter cantado o que cantou por saber, antecipadamente, que hoje só muito dificilmente alguém o ouviria, respeitaria ou mesmo lhe solicitaria um autógrafo. É isto que a merda do tempo que passa faz às pessoas. Os que têm memória ou estão velhos e caquéticos recordam para dentro e ficam nostálgicos; os mais novos ofendem aqueles que se lembram por se tratar de música cafona e de letras que hoje parecem, à 1ª vista, não terem fundamento ou relação com as suas vidas, não obstante as novas e gritantes desigualdades intergeracionais que o capitalismo de casino desta globalização predatória impôs às sociedades europeias e aos seus filhos, que somos todos nós: aqueles que hoje habitamos o Velhinho Continente. Com ou sem Zeca Afonso ou ecos das suas belas e utópicas músicas e letras, que ainda hoje nos ajudam a envelhecer mais lentamente, porque somos obrigados a recordar o tempo perdido, como diria Marcel Proust... Fez hoje 20 anos após a morte de Zeca Afonso e o mundo parece hoje mais desigual, fragmentado e sacana do que nunca...
PS: estou muito curioso para saber o que de tudo isto pensará o Memórias Futuras, que pela geração e vivências saberá muito melhor descobrir a alma dessas narrativas do que um puto que do zeca só tem uma memória fragmentada.
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